quarta-feira, 21 de janeiro de 2009

Psicanálise às Voltas com Mediocridade II


Um dos índices de mediocridade surge quando se vê psicanalistas tratando a matéria clínica como matéria empírica. A confusão é de natureza inconsciente: mistura-se o gramatical, algo que deveria ser apenas o estabelecimento de relações internas (como na arte, como na religião, como nos rituais de todo tipo), com uma verdade de tipo experimental ou científico, algo que estabelece relações externas.

E é por isso que desconfio muito da aplicação da psicanálise por psicólogos e médicos com parca formação humanista. Vem dessa gente (em geral, claro) uma vontade de teorização expressa em frases soltas ao vento, do tipo:

- "Isso, claro, corresponde a uma reação anal com claros índices edipianos" (ele quer referir-se a alguém protestando)

- "A sua linguagem delirante mostra de imediato a foraclusão pela invasão do real no simbólico" (ele quer referir-se a uma entrevista com um esquizofrênico)

- "A impossibilidade de realização do luto impede o processo de introjeção da libido no ego" (ele quer referir-se a uma dificuldade de saída do luto)

E claro, aqui o analista pula do concreto, da práxis, para o abstrato de uma teoria qualquer.

No livro de Elisabeth Roudinesco, História da Psicanálise na França (Zahar, 1988, p. 652), lemos algo a respeito desse tipo de mediocridade coletiva entre lacanianos. Tratava-se de um comentário ciumento de Lacan, no contexto da Escola Freudiana de Paris, contra Nicolas Abraham, Maria Torok e Jacques Derrida. Cito:

"A obra alcança extraordinário sucesso, notadamente depois que alguns lacanianos sentem-se fascinados por essa cripta barroca, ao mesmo tempo tão próxima e tão distante de seu palavreado cotidiano. O próprio Lacan fica muito surpreso. E, sentindo-se agredido pelo fato de se tocar dessa maneira num território do qual se apropriara, interpreta mal a elaboração dos autores e do prefaciador. Em seu seminário, comenta a obra esquecendo-se de que Abraham morreu há um ano e afirmando que Derrida deve estar em análise com os dois autores, já que se atrela a eles. Alguns imbecis na platéia explodem numa gargalhada, persuadidos da justeza dessa interpretação."

O que dizer dessa gente que confunde matemas com realidade? Anos a fio aprendendo e aplicando Lacan, citando-o de cor e salteado, e usando, por exemplo, o matema dos quatro discursos como se fosse uma descrição da universidade, da histérica ou da psicanálise e não uma gramática de posições subjetivas.

O que pode a história ensinar a essa gente sobre os destinos tão funestos que a psicanálise às vezes escolhe para si?

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