segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Ética e a Falta de Escrúpulos (II)


Bem, se não há ato sem linguagem, isto é, se mesmo para o ato sem sentido aparente um sentido pode ser dado, então atos perversos, cínicos, ou, simplesmente, anti-éticos, somente ocorrem em contradição com o simbolismo. Não é que o simbolismo seja outro, com o que então não haveria perversão, cinismo ou quebra ética, como os canibais em relação ao explorador europeu, mas que o sentido desses atos tem que fazer parte do mesmo simbolismo em que agem.

Dizer, por exemplo, que um canibal tupinambá do século XVIII é perverso não faz sentido. Seus atos de canibalismo só têm sentido na sua forma de vida, onde não são perversos. Só dizemos de alguém que seus atos são perversos, cínicos ou anti-éticos quando eles são parte da nossa cultura. Dessa forma, é dentro de uma cultura que consideramos um ato perverso, cínico ou anti-ético. Nesses casos, se a ação estiver encoberta pela aparência de ética, se foram dela parasitários. Se é assim, esses atos são como cabeçadas na linguagem.

O perverso, por exemplo, age organizadamente desorganizando o que ele mesmo quer organizado. É uma pretensão ao gozo absoluto, à desigualdade em cima da exigência da igualdade de qualquer outro, à exceção à regra só possível na encarnação simbólica. O cínico, por sua vez, pretende uma neutralidade sem compromisso no mesmo sistema do qual desfruta e goza a vida. Ele participa sem participar, está no jogo sem entrar nele, simulando uma crítica ou um desprezo superior. E o anti-ético, finalmente, simplesmente não se dá conta de que burla as regras. São atos inanes e ocos, onde evidentemente se instala uma densa opressão - não só contra o outro, mas possivelmente também contra si, na forma irreal porém pesada da angústia.

Mas se você é o único crédulo do aquário, se você é aquele que recusa a aparência ética, e se responsabiliza por seus atos diante do outro, então aja realmente em favor da ética, sem o pejo da dúvida.

Se a ética é um interesse da vontade, então o ético é agir para mudar a vontade doente. Não só atos de desorganização da vida podem ser criticados e combatidos, atuando-se terapeuticamente contra a doença da vontade, mas também podemos tentar mudar a própria forma de organização simbólica (e da vontade), o que não interessa, nem de longe, ao perverso, ao cínico ou ao anti-ético.

Não se trata de adaptacionismos, de preservar o aquário como dado definitivo. Trata-se de direcionar a vontade para preservar a vida: este é o interesse. Sabendo, no entanto, que não há uma única forma de compreender o que seja "vida".

Lembremos que o ato ético não se faz de acordo com a maioria. Mas tampouco pode ser uma ação unilateral. Se é a vontade que está em jogo, então ela não é, certamente, uma vontade originalmente própria: ela é apropriada no decurso e no comprometimento com a vida. Porém, apropriada, a ética é a nossa responsabilidade diante do outro, de acordo com a nossa vontade, claro. Em outros termos isso também representa uma possibilidade da subjetivação - o afirmar-se, o assumir a vontade como sua também, e o não alienar-se, fazendo voltar contra si a vontade, ou contra a vida, em geral. Ser coerente com o parâmetro de medida da cultura, ser coerente com a vida, comprometendo-se. Coerência simbólica, claro; nada a ver com "racionalidade".

Logo, o mal-estar resultante da organização em sociedade, tese do individualismo, deve ser, antes, produto dos galos que ganhamos ao bater com a cabeça no muro da linguagem (cf. Investigações Filosóficas, § 119). Nada se pode pressupor acerca dos resultados da organização simbólica, senão na sua própria aplicação. O a priori da linguagem se mostra no seu emprego. Logo, também, não se trata de uma luta de todos contra todos – tese indefensável – mas, muito concretamente, de uma luta de classes contra classes. A sociedade, sempre em conflito e sempre organizando-se através de seus variados jogos de poder.

* (Tudo isso é, no fundo, o que eu tanto gostaria de dizer para Viviane Franco da Silva, se tão somente ela tivesse uma condição mínima de compreender.

4 comentários:

filomena disse...

Acho que eu não entendo o que você diz. Parece maniqueísta a afirmação. Acho que não dá para dividir tão claramente e sempre os peixes do suposto aquário. Depende do contexto e um mesmo ato pode ser ético ou não, já que a ética/falta de ética como entendo de sua fala pode ser consciente ou não. Enetendo que você mesmo afirma que não estamos diante de uma dicotomia facilmente separável. Pode ser que eu não tenha entendido nada.

Decolonizing Wittgenstein disse...

Normal, Filomena.

Nós falamos com diferentes sotaques, ou talvez até falemos diferentes dialetos.

Mas se formos conversando, muito, muito, pouco a pouco vamos nos entendendo.

Aqui há uma filosofia do ato, que não é o mesmo que uma teoria da ação. Mas uma filosofia do ato em consonância com Bakhtin e com Wittgenstein, e muito à diferença de Austin.

O ato é imediato, sem pensamento e, no entanto, é conforme a um sentido. Até mesmo para atos perfeitamente incompreensíveis, como surtos psicóticos, por exemplo, para os quais se busca uma interpretação empiricamente adequada, é assim.

A responsabilidade do ato pode ou não ser assumida de acordo com esse sentido.

(Não assumo que o sentido de um ato seja necessariamente lógico, no sentido da lógica clássica. O que nada depõe contra uma investigação científica do inatismo em linguagem.)

Mas, olho: uma interpretação do ato, por melhor que seja, não é o próprio ato, é outro ato. A primazia do prático sobre o teórico é muito importante aqui para dissolver dogmatismos e evitar confusões.
Uma interpretação só serve se for assumida em primeira pessoa, isto é, se o sujeito do ato assumir que isso é o que ele faz. O que seria, no caso, uma visão do mesmo já sob outro aspecto (daí, para mim, a importância do estético, pela possibilidade de mudança vivencial incutida na sua polissemia.)

Exemplo: algumas pessoas que deveriam distribuir os donativos para os desabrigados de S. Catarina, que estavam lá justamente para isso, resolveram levar para si também alguns desses. É muito provável que eles nem sequer tenham percebido a contradição, fizeram-no com a maior simplicidade do mundo, e provavelmente também reagiriam ferozmente a qualquer indicação de crítica. Mas a contradição dos seus atos está lá - na linguagem, nos pressupostos assumidos, conscientemente ou não, no seu ato de participação voluntária.

Mas a contradição, por outro lado, está na forma como vejo as coisas, e não na forma como os irresponsáveis o vêem. Eles, para si mesmos, nada fizeram de mal. Assim como o seqüestrador e assassino de Eloá, Lindemberg Farias, não se enxerga como um enviado do mal. Assim, para que eles vejam o que fizeram, teríamos que convertê-los ao nosso ponto de vista, à nossa interpretação do mundo. Essas pessoas justificam seus atos de alguma forma; a nós cabe indagar-lhes pelos seus pressupostos e compará-los com seus atos. Que eles sejam contraditórios, é uma aposta nossa. Parte de nossas próprias certezas.

É isso o que estamos fazendo com o nosso protesto (e com a arte, com a filosofia, e com as nossas atitudes). Tentando persuadir o outro para o nosso ponto de vista.

Não é maniqueísmo. O maniqueísmo é classicamente uma visão sub specie aeterni, uma bird`s eye point of view. Num ato não há uma possibilidade de ver-se de cima, porque já se está dentro, dividindo o mundo entre cúmplices e adversários. O dogmatismo, nesse sentido, só se pode evitar se pudermos ser críticos também de nossos próprios atos, não só os dos outros. Não sendo impedida a crítica, nem a mim nem ao outro, protestamos veementemente contra o roubo dos donativos enviados a S. Catarina, sem que, por isso, sejamos maniqueístas. Meu ato, imediato, me situa dentro de um partido e contra outros partidos.

Trata-se de uma questão de converter o outro, não de convencê-lo racionalmente (tarefa impossível), para o nosso mundo.

Viu? O sentido de uma palavra no seu uso, no ato de protesto?

Houve sentido porque o pensamento é lógico, ou seria a aplicação da lógica que dá um sentido ao pensamento, assim como um emprego não-lógico de certas regras dá sentidos não-lógicos a suas justificações?

Há relativismo em pensar numa multiplicidade de aplicações e de pensamentos? Ou só há relativismo desde um ponto de vista divino, sem comprometimento temporal?

Não há como decidir de cima: se a primazia vai para o prático ou para o teórico, é uma questão de escolha, um ato. O relativismo é uma acusação que parte de um ponto de vista interessado.

E nesse último parágrafo reconheço um círculo vicioso pelo qual me responsabilizo ao deixar olhos e ouvidos bem abertos para outras possibilidades de pensamento, olhos e ouvidos bem abertos para criticar minha própria atitude - enquanto assumo com consciência e força o que faço.

(Continuamos nossa conversa, não?)

Bjs, JJ.

filomena disse...

Mas não ficamos com o perigo de afirmar que a angústia pode ser a única coisa que não é perversa?

Decolonizing Wittgenstein disse...

Ficamos em perigo, por assim dizer, ao afirmar fatos psicológicos em abstrato. Angústia, prefiro pensá-la como dada num ato.

Como saberemos se há angústia senão no contexto de uma história particular?