segunda-feira, 29 de dezembro de 2008

A Palo Seco

O que há na vida de tão espetacular se o mais das vezes a nossa face triste e miserável é o que se deixa ver?

Talvez seja não o espetáculo grandioso, o que esperamos, o rio imenso, espesso, mas o mais mínimo, quase inócuo, o incontado.

Talvez seja o que diz Cabral, que o que vive incomoda de vida, não o caudaloso, que arrebenta na cheia tudo por onde passa. Mas o que persiste, a formiga no chão, o cão que volta não importa o que se faça, o latido do coração.

Ficar, de novo, silenciosamente apaixonado por essa mulher na minha frente, que é tão bela e não se dá conta, que é tão simples que quero abraçá-la, que é tão complexa que temo dizê-lo.

O que vive incomoda porque insiste com o aceno da solidão.
O que vive explode de vida e não se pergunta por solidão.
O que vive está sempre aqui, ao toque da mão, diante do olhar, na composição, mau e bom, no próprio risco de tentar viver, no puro ato de bater de novo o coração.

A vida, o mais mínino; a alegria, a explosão.

domingo, 21 de dezembro de 2008

A Resistência é do Analista

Quero trazer aqui pra frente uma parte da reflexão do meu amigo Rodrigo Suárez Abreu, que me chama a atenção no comentário ao post de baixo para o fato de que o simples, que ali menciono, é, na verdade, muito difícil. Árduo, eu diria.

Rodrigo diz "E
isso é o que torna tão difícil ser psicanalista, pois na clínica, o psicanalista experimenta a capacidade de despojamento que ele tem de si mesmo, de seus valores, de preconceitos, através dos resultados ressubjetivantes ou não de suas intervenções para com seus pacientes.
"

O que ele expressa, eu creio, é a dificuldade da resistência do analista: a dificuldade da ética do desejo. Não é fácil ser analista, não é para qualquer um. Se não houver despojamento, de fato, não há análise. Mas, quem é realmente, de verdade, capaz de despojamento?

Lacan disse "Não há na análise outra resistência senão a do analista" (Écrits, p. 377). A resistência do paciente são favas contadas. Já sabemos que ele fará de tudo para sabotar a análise e que esses movimentos, esses atos, são parte da transferência e preciosas amostras do inconsciente do sujeito. O analista não pode perder ali a oportunidade de realizar um ato analítico. Mas, e o próprio analista?

Se ele mesmo não tiver saído de sua própria prisão narcísica, não fará nenhuma intervenção analítica - perderá todas as oportunidades, será incapaz de ouvir o paciente. Portanto, a análise só pode ser difícil ou árdua por motivos éticos, porque é difícil não olhar para o próprio umbigo. Por outro lado, ouvir o paciente, acolher o seu sofrimento, é a única condição para sair da dor.

Assim, é simples e é árduo - do ponto de vista clínico. Simples, porque a tarefa do analista é ocupar a sua posição na transferência; árduo, porque é difícil desocupar-se de si e fazer-se objeto causa do desejo do outro.

A dificuldade da análise vê-se no fato de que o analista deve poder decidir se aceita ou não como paciente o potencial suicida.

Isso é simples.

Toda dissolução de um problema em psicanálise é simples


Toda dissolução de um problema em psicanálise é simples. Porque a saída está bem ali, diante dos nossos olhos.

Para quem sofre, porém, a resolução parece extremamente difícil. Tudo afigura-se como muito complicado, cada movimento é muito pesado, como se a gravidade, triplicada, impedisse a ação. Exatamente porque o sujeito não enxerga a prisão formal em que se meteu.

Além do mais, essa pequena casa, a linguagem, é vivida como um abrigo contra as intempéries que aterrorizam o sujeito. Ele sente qualquer crítica como ameaça de desamparo, de desproteção, e apega-se com força máxima àquilo que falsamente o protege. A linguagem, na medida em que nos abriga e abre janelas pelas quais vemos o mundo, oculta outras coisas com suas paredes. Assim, quando há sintoma, a imagem se transforma no osso que o paciente não quer largar, muito embora sinta um terrível sofrimento. A anoréxica vê um corpo obeso no espelho, para o deprimido tudo é irritante e nada funciona a seu favor, o paranóide vê armar-se contra ele todo um complô, o bipolar em estado maníaco está mais do que certo acerca do êxito dos seus mirabolantes projetos. O olho vê o mundo mas não se vê no mundo. Falta-lhe uma visão panorâmica. De nada adianta chamar-lhe a atenção para as suas incongruências, é preciso mudar o sentido na linguagem, ver outros aspectos.

Mas o apego ao sintoma é muito mais forte que argumentos racionais. Temos certezas (e dúvidas) na linguagem. Nossas certezas, no entanto, quando misturadas a imagens, comportam perigos mortais e, nesse caso, podemos tratar a linguagem do enfermo como uma prisão narcísica. O perigo provém da cegueira (para lembrar, aqui, Saramago), do fato de que o desejo do paciente alienou-se no desejo do outro; do fato de que, sendo o desejo o desejo do outro, por ser linguagem, perde-se imperceptivelmente a autonomia, como uma carteira roubada enquanto caminhamos no meio da multidão.

Sobre a vivência da nossa linguagem, há uma pequena ilustração terapêutica de Wittgenstein, que mostra a prisão da imagem como aquela da agonia do asceta que, entre lamentos e gemidos, reclama da pesada bola de ferro que carrega sobre a sua cabeça. Então alguém passa e lhe diz: "Deixe-a cair" (cf. The Big Typescript, TS 213. Oxford: Blackwell Publishing, 2005, p. 307). Em filosofia, como em psicanálise, trata-se de encontrar a palavra correta, aquela única capaz de liberar do sofrimento o cativo da prisão narcísica.

Para quem vê de fora, parece tolice. Como pode ser que a pessoa não veja o que deve ser feito, se é tão simples e tão imediato? Mas quem está de fora, . Experimente, por exemplo, andar pela calçada de uma movimentada avenida com uma venda nos olhos, e você verá como é difícil para quem não vê.

Essa resistência do paciente, esse apego inflexível ao sintoma, é chamado pela psicanálise de inconsciente. Um grande psiquiatra e terapeuta, Flávio Gikovate, não acredita no inconsciente da psicanálise. Ele diz, e com razão, que o inconsciente só serve para perpetuar na psicanálise muitas coisas inconscientes.

Discutir a existência do inconsciente, porém, é um caminho equivocado. Cairíamos no paralogismo kantiano, já que o fato psicológico não é um objeto da experiência espaço-temporal. Outra coisa é abordar o inconsciente pela linguagem, como um conceito apenas operativo, gramatical, que funciona como uma ferramenta e nada representa no mundo. Nomear assim o inconsciente significa dizer que é no ato, vivido no interior do setting analítico, que se dá ao analista a abertura inconsciente na qual ele intervém.

Lacan lembra, concretamente, que o inconsciente é aquilo que entre o sujeito e o Outro é o seu corte em ato (cf. Écrits, p. 839). Inconsciente é o nome da possibilidade que se abre para a intervenção do analista dentro da fala narcísica do paciente, aquela intervenção que rasga as paredes da sua prisão, abre janelas para outro panorama e permite que as imagens se modifiquem. Como não se trata de convencimento, as intervenções do analista só podem se dirigir ao inconsciente.

Para isso, só pode ser utilizado o material que o próprio paciente apresenta. O analista não pode tirar nenhuma conclusão acerca do paciente, só pode restringir-se à fala, à atuação sobre a forma da fala do paciente, não ao seu conteúdo. A condição para que tudo isso funcione é a transferência, a adesão do paciente ao tratamento e a condução da análise dentro das regras fundamentais da psicanálise.

O final da análise é uma saída ética, na qual se troca o desejo de reconhecimento pelo reconhecimento do desejo. Não somente o saber de um inconsciente que não se sabe, o cuidado de si, mas também a responsabilidade, a preocupação do fazer com o outro, fora de uma exclusividade irresponsável consigo.

sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Não Há Marcas Anatômicas na Psiquiatria


Este é Gaëtan Gatian de Clérambault, conhecido pelos conceitos de "erotomania" e de "automatismo mental". Lacan, algumas décadas após a sua tese de doutorado em psiquiatria, na qual nada utiliza das teorias do professor senão para fazê-las figurar na bibliografia, declara na maior desfaçatez que foi o seu mestre em psiquiatria. Colou na idéia do automatismo na década de 50 para constituir a sua própria noção de repetição simbólica.

Mas Clérambaut era organicista convicto; na tese de 32, Lacan alinha-se pelo partido da psicogênese, reatualizando a psicologia concreta de Politzer (sem mencioná-la) para dar um sentido para o caso Aimée. Tudo bem, porque Clérambaut havia se suicidado melancolicamente em 1934 e nada mais podia reclamar.

Mas a tese de Lacan em psiquiatria mostra, sem dizer, no início do século XX, os problemas habitacionais da psiquiatria no campo da medicina. Organicistas e psicogenicistas tentavam legitimar-lhe um lugar, uma área de investigação própria, uma casa, de um tipo ou de outro, onde ela pudesse permanecer ao abrigo de intempéries.

O advento dos neurolépticos e o aparecimento do DSM, um manual de psiquiatria com conceitos puramente operatórios e que nada afirmam a respeito de uma gênese, parecem ter varrido a polêmica para baixo do tapete e escamoteado até hoje disputas maiores nesse setor. Não quer dizer que o mal-estar não exista, porque na sua prática, por qualquer via que tenha escolhido, ou a psiquiatria não passa de psicologia, ou a psiquiatria não passa de neurologia, conquanto inventivas sejam quaisquer das novas teses que dizem ter resolvido o problema e justificado objetivamente um lugar. Tudo não pode ser, necessariamente, mais que bla-bla-blá filosófico, e a psiquiatria vai ficando ali, dentro do armário, sem nada assumir de fato. Há muito dinheiro em jogo, afinal. As instituições, centros de pesquisa, hospitais e a academia estão todos muito bem montados, funcionando com centenas de funcionários e milhares de atendimentos. Os projetos de pesquisa que fazem andar a especialidade, na forma necessária de um bla-bla-blá filosófico de fundo, vão sendo submetidos a pareceres para o pessoal da área de saúde (médicos, biólogos), que os aprovam sem qualquer visão crítica, sem qualquer profundidade: vão dizer o quê? Avaliar filosofia
? Tomam os projetos apenas como "científicos", na forma em que se acostumaram a enxergar essa palavra. E, assim, end of the story as we know it, psiquiatras fumam charuto e tomam uísque nas suas festinhas - numa boa. Melhor deixar tudo como está.

Lembro disso a propósito de um fato recente ocorrido em Milão, em junho passado (ainda bem que foi em Milão, e não em São Paulo onde isso não é possível). Foi decretada a prisão de um grupo de médicos que trabalhava numa clínica particular, denominada Santa Rita. Eles efetuavam procedimentos médicos e cirúrgicos desnecessários em pacientes indefesos e crédulos, para aumentar o reembolso devido pelo Estado.

Imagine se fosse um ambulatório de psiquiatria. Como poderia um paciente psiquiátrico, já em si racionalmente desqualificado por um "diagnóstico" (sic) de "transtorno mental", sem quaisquer marcas anatômicas, apresentar queixa contra um procedimento que lhe tenha sido mal aplicado?

O que é um procedimento psiquiátrico mal aplicado
?


quinta-feira, 18 de dezembro de 2008

Atos sem Sentido?

Se não há atos sem sentido, o que dizer de delírios e alucinações? O que dizer da tese da incompreensibilidade da psicose?

É claro que é correto dizer que o sentido colhe-se nos atos. Isso é completamente diferente da proposição "não há atos sem sentido", e dissolve o problema da incompreensibilidade da psicose.

"Idéia de Freud: a fechadura não está destruída na loucura, só modificada; a velha chave não pode mais abri-la, mas uma chave configurada de outro modo poderia".
(CV, p. 39; MS 120, p. 56v)

segunda-feira, 15 de dezembro de 2008

A Ética e a Falta de Escrúpulos (II)


Bem, se não há ato sem linguagem, isto é, se mesmo para o ato sem sentido aparente um sentido pode ser dado, então atos perversos, cínicos, ou, simplesmente, anti-éticos, somente ocorrem em contradição com o simbolismo. Não é que o simbolismo seja outro, com o que então não haveria perversão, cinismo ou quebra ética, como os canibais em relação ao explorador europeu, mas que o sentido desses atos tem que fazer parte do mesmo simbolismo em que agem.

Dizer, por exemplo, que um canibal tupinambá do século XVIII é perverso não faz sentido. Seus atos de canibalismo só têm sentido na sua forma de vida, onde não são perversos. Só dizemos de alguém que seus atos são perversos, cínicos ou anti-éticos quando eles são parte da nossa cultura. Dessa forma, é dentro de uma cultura que consideramos um ato perverso, cínico ou anti-ético. Nesses casos, se a ação estiver encoberta pela aparência de ética, se foram dela parasitários. Se é assim, esses atos são como cabeçadas na linguagem.

O perverso, por exemplo, age organizadamente desorganizando o que ele mesmo quer organizado. É uma pretensão ao gozo absoluto, à desigualdade em cima da exigência da igualdade de qualquer outro, à exceção à regra só possível na encarnação simbólica. O cínico, por sua vez, pretende uma neutralidade sem compromisso no mesmo sistema do qual desfruta e goza a vida. Ele participa sem participar, está no jogo sem entrar nele, simulando uma crítica ou um desprezo superior. E o anti-ético, finalmente, simplesmente não se dá conta de que burla as regras. São atos inanes e ocos, onde evidentemente se instala uma densa opressão - não só contra o outro, mas possivelmente também contra si, na forma irreal porém pesada da angústia.

Mas se você é o único crédulo do aquário, se você é aquele que recusa a aparência ética, e se responsabiliza por seus atos diante do outro, então aja realmente em favor da ética, sem o pejo da dúvida.

Se a ética é um interesse da vontade, então o ético é agir para mudar a vontade doente. Não só atos de desorganização da vida podem ser criticados e combatidos, atuando-se terapeuticamente contra a doença da vontade, mas também podemos tentar mudar a própria forma de organização simbólica (e da vontade), o que não interessa, nem de longe, ao perverso, ao cínico ou ao anti-ético.

Não se trata de adaptacionismos, de preservar o aquário como dado definitivo. Trata-se de direcionar a vontade para preservar a vida: este é o interesse. Sabendo, no entanto, que não há uma única forma de compreender o que seja "vida".

Lembremos que o ato ético não se faz de acordo com a maioria. Mas tampouco pode ser uma ação unilateral. Se é a vontade que está em jogo, então ela não é, certamente, uma vontade originalmente própria: ela é apropriada no decurso e no comprometimento com a vida. Porém, apropriada, a ética é a nossa responsabilidade diante do outro, de acordo com a nossa vontade, claro. Em outros termos isso também representa uma possibilidade da subjetivação - o afirmar-se, o assumir a vontade como sua também, e o não alienar-se, fazendo voltar contra si a vontade, ou contra a vida, em geral. Ser coerente com o parâmetro de medida da cultura, ser coerente com a vida, comprometendo-se. Coerência simbólica, claro; nada a ver com "racionalidade".

Logo, o mal-estar resultante da organização em sociedade, tese do individualismo, deve ser, antes, produto dos galos que ganhamos ao bater com a cabeça no muro da linguagem (cf. Investigações Filosóficas, § 119). Nada se pode pressupor acerca dos resultados da organização simbólica, senão na sua própria aplicação. O a priori da linguagem se mostra no seu emprego. Logo, também, não se trata de uma luta de todos contra todos – tese indefensável – mas, muito concretamente, de uma luta de classes contra classes. A sociedade, sempre em conflito e sempre organizando-se através de seus variados jogos de poder.

* (Tudo isso é, no fundo, o que eu tanto gostaria de dizer para Viviane Franco da Silva, se tão somente ela tivesse uma condição mínima de compreender.

segunda-feira, 8 de dezembro de 2008

A Ética e a Falta de Escrúpulos (I)


Se colocássemos num aquário dez pessoas para que elas se organizassem e tentassem sobreviver, repartindo os recursos disponíveis e favorecendo a vida da melhor forma possível, isto é, garantindo mais ou menos igualitariamente a coisa em termos de satisfação afetiva e alimentar, isso daria certo? Aparentemente, não; a expectativa não se realizaria, me parece, se já um dos dez no aquário fosse inescrupuloso. Num ambiente fechado, bastaria supostamente apenas um perverso para que a vida não fosse mais possível ou fosse, pelo menos, dificilmente exeqüível.

No entanto, a vida se organiza mesmo em face das condições as mais miseráveis, como no combalido Zimbábue de Robert Mugabe, ou como a flor no asfalto de Drummond. O que, por outra parte, facilita bastante a rotina de perversos e cínicos, que devem contar sempre com alguém moralmente preocupado para poder levar a termo suas atuações.

Entre o comportamento altruísta e o mais deslavado egoísmo, faces incongruentes da nossa atuação, houve preocupação do pensamento em desvendar o segredo, o quê da nossa moral, na forma de uma suposta natureza humana. Tanto para Hobbes (O Leviatã) quanto para Freud (O Mal-Estar na Civilização), individualistas hiperbólicos, organiza-mo-nos em sociedade e possibilitamos a continuação da vida a custo de uma renúncia ao prazer. O altruísmo é forçado pelo medo e pela necessidade de preservação. Nossa natureza profunda seria, na realidade, perversa, motivada pelo imperativo cego do prazer. Mas como as conseqüências coletivas da realização individual do prazer são terríveis (Hobbes a denomina de "guerra de todos contra todos"), o medo nos conduz à organização em sociedade, o que adia a consecução do prazer mas presentifica a ética.

Essa organização social, que nos protege da morte certa, deve ser simbólica, antes de tudo. As amarras da rede social são tanto mais fortes e seguras quanto mais internalizadas e mais inconscientes . Simbolicamente, então, o gozo total, nossa necessidade compulsiva, é transferido para uma espécie de pai-soberano-absoluto que, como exceção, assegura de longe, retirado da guerra, uma vida mais segura para todos. Porém menos plena, a custo de um quantum de privação de cada um. O que no fundo, segundo os autores, não nos faz tão bem.

O simbólico, vazio, é apenas matéria inerte que serve para organizar o imaginário em torno de um ideal, emprestar-lhe suporte, e, com isso, apaziguar os ânimos beligerantes pela renúncia de cada um ao gozo total. O simbólico deve permanecer apenas como abrigo, como estrutura, como forma sem conteúdo. Qualquer tentativa real de alguém para a prática do gozo absoluto, para a encarnação da alma simbólica, seria a morte também para todos: a perda do simbólico, a queda do abrigo, restauraria a falta de sentido originária e a desorganização completa.

Essa hipótese individualista, bastante ao gosto de empiristas e liberais, não se verifica no dia-a-dia – e eles sabem disso. O socius não é uma panacéia, não evita a barbárie, nem parece que ela esteja evolutivamente mais distante. Parece apenas que a barbárie muda de figura cada vez que inventamos um modo diferente de organizar-mo-nos em sociedade. O que constatamos quase que diariamente é uma situação bastante parecida à descrição do filme de Sérgio Bianchi, Cronicamente Inviável. Todos somos hipócritas, de certo modo, todos tentamos inventar um jeito de colocar em prática o gozo absoluto, e a ética afigura-se como uma eloqüente ausência. Nem por isso o simbólico se desvanece. A prova é que mesmo no Zimbábue de Mugabe há ética, senão dela não haveria noção. A prova é que podemos praticar o cinismo e também falar sobre ele – atividades não registradas entre os animais.

Muitos animais se comunicam, e se organizam em bandos, é claro, mas não vimos até agora nenhum contando histórias, divertindo-se com piadas, realizando ritos religiosos ou refletindo sobre a dor. Entre nós, não parece haver ato sem linguagem. Aparentemente não podemos atuar desacompanhados de um sentido, aparentemente não podemos falar de nada humano despossuído de uma aplicação de signos muito mais variada. Nós não somente representamos o empírico, tornamos o ausente presente, como certos animais, mas também manipulamos o simbólico, fazemos coisas com ele, tornamos o presente ausente. Se o que anotou Wittgenstein em 1931 for correto (MS 110, p. 61), a solidariedade entre o empírico e o simbólico deve ser, entre nós, indivisível. Ele disse que "O limite da linguagem se mostra na impossibilidade de descrever o fato que corresponde à proposição sem repetir a proposição. (Isso tem a ver com a solução kantiana do problema da filosofia.)"

Se assim for, então a horda originária de Freud e o estado de natureza de Hobbes, como dados fora da linguagem, são ficções gramaticalmente compreensivas, no entanto contraditórias como dados empíricos.

Se não há ato sem linguagem, se não há um enigma a ser desvendado, se não há nada a ser descoberto no passado evolutivo em termos morais, se nada há por detrás das palavras, o ato expressa, simplesmente, uma vontade. O ato, sem sentido como tal, constitui o sentido, é um fundamento sem fundamento. O fundamento é então a práxis: nela encontra-se uma razão aliada a uma vontade.

Mas vontade não se explica. Ela é antes a razão de uma explicação que a justifica, um princípio de razão suficiente, digamos.

Assim, poderíamos pensar que uma organização social é apenas um ideal, um imaginário que às vezes se confunde com o simbolismo, como já o pressupõe a palavra "ideal". Qualquer prestidigitação de palavras que faça distinções – também imaginárias – entre "ideal de sociedade" e "sociedade ideal", com resquícios práticos diferentes e piores que os ideais, apenas expressam essas confusões entre o imaginário e o simbólico. No real, uma sociedade é a nossa prática social em conjunto, a expressão de uma vontade.

E, também assim, é atual - e bastante - a situação descrita no livro de Saramago – e também no filme de Fernando Meirelles – Ensaio Sobre a Cegueira. (E compreende-se aqui perfeitamente o que o prêmio Nobel quis dizer com o seu "comunismo hormonal" no Teatro F. de São Paulo em 28/11/2008.)

O fato, em termos morais, não é apenas que a razão tem interesse, o que até Kant já sabia (cf. Crítica da Razão Pura B 494), mas que a própria razão é um interesse. Que a razão escolha para si regras racionais a priori consignadas como um dever ("agir de tal forma que a máxima da tua ação possa ser uma lei universal"), já é em si um ato de vontade. Ato é vontade, e ato não é, em si, racional. Além disso, uma vontade racional tampouco é, por si mesma, nem melhor nem pior que qualquer outro ato de vontade, senão sob um ponto de vista. Daí não haver parâmetros éticos senão para uma vontade, no seu ato. O ato não está fora do simbolismo, ele o constitui.

A ética, portanto, deve ser apenas aquilo que a vontade reconhece como tal. E a vontade é, simplesmente, aquela que domina. No mundo hodierno, suficientemente cínico, há muita gente que já percebeu silenciosa e espertamente este fato, e age dissimuladamente, de forma a acumular vantagens para si, fazendo da ética uma aparência. Em política, diz-se, o importante não é ser ético, mas parecer ético. Em termos filosóficos, essa é a situação descrita em Cronicamente Inviável ou no Ensaio Sobre a Cegueira.

É como se quase todo mundo hoje já soubesse qual é o jogo que se joga, e que, se você não jogar o jogo, você perde. As pessoas, conscientemente ou não, agem assim: manipulam o simbólico. Psiquiatras, líderes religiosos, filósofos, jornalistas, vários deles, agem assim: são cínicos, perversos, mesmo sem sequer dar-se conta.

Não há nenhum enigma da natureza humana a ser desvendado nisso, apenas a vontade atuando. E nos atos encontra-se o seu sentido.

Digamos, então, que no aquário não há nove éticos e um perverso. Talvez sejam nove espertos e um crédulo.

Se você é o crédulo, o que fazer agora?

Sigo depois.