domingo, 21 de dezembro de 2008

Toda dissolução de um problema em psicanálise é simples


Toda dissolução de um problema em psicanálise é simples. Porque a saída está bem ali, diante dos nossos olhos.

Para quem sofre, porém, a resolução parece extremamente difícil. Tudo afigura-se como muito complicado, cada movimento é muito pesado, como se a gravidade, triplicada, impedisse a ação. Exatamente porque o sujeito não enxerga a prisão formal em que se meteu.

Além do mais, essa pequena casa, a linguagem, é vivida como um abrigo contra as intempéries que aterrorizam o sujeito. Ele sente qualquer crítica como ameaça de desamparo, de desproteção, e apega-se com força máxima àquilo que falsamente o protege. A linguagem, na medida em que nos abriga e abre janelas pelas quais vemos o mundo, oculta outras coisas com suas paredes. Assim, quando há sintoma, a imagem se transforma no osso que o paciente não quer largar, muito embora sinta um terrível sofrimento. A anoréxica vê um corpo obeso no espelho, para o deprimido tudo é irritante e nada funciona a seu favor, o paranóide vê armar-se contra ele todo um complô, o bipolar em estado maníaco está mais do que certo acerca do êxito dos seus mirabolantes projetos. O olho vê o mundo mas não se vê no mundo. Falta-lhe uma visão panorâmica. De nada adianta chamar-lhe a atenção para as suas incongruências, é preciso mudar o sentido na linguagem, ver outros aspectos.

Mas o apego ao sintoma é muito mais forte que argumentos racionais. Temos certezas (e dúvidas) na linguagem. Nossas certezas, no entanto, quando misturadas a imagens, comportam perigos mortais e, nesse caso, podemos tratar a linguagem do enfermo como uma prisão narcísica. O perigo provém da cegueira (para lembrar, aqui, Saramago), do fato de que o desejo do paciente alienou-se no desejo do outro; do fato de que, sendo o desejo o desejo do outro, por ser linguagem, perde-se imperceptivelmente a autonomia, como uma carteira roubada enquanto caminhamos no meio da multidão.

Sobre a vivência da nossa linguagem, há uma pequena ilustração terapêutica de Wittgenstein, que mostra a prisão da imagem como aquela da agonia do asceta que, entre lamentos e gemidos, reclama da pesada bola de ferro que carrega sobre a sua cabeça. Então alguém passa e lhe diz: "Deixe-a cair" (cf. The Big Typescript, TS 213. Oxford: Blackwell Publishing, 2005, p. 307). Em filosofia, como em psicanálise, trata-se de encontrar a palavra correta, aquela única capaz de liberar do sofrimento o cativo da prisão narcísica.

Para quem vê de fora, parece tolice. Como pode ser que a pessoa não veja o que deve ser feito, se é tão simples e tão imediato? Mas quem está de fora, . Experimente, por exemplo, andar pela calçada de uma movimentada avenida com uma venda nos olhos, e você verá como é difícil para quem não vê.

Essa resistência do paciente, esse apego inflexível ao sintoma, é chamado pela psicanálise de inconsciente. Um grande psiquiatra e terapeuta, Flávio Gikovate, não acredita no inconsciente da psicanálise. Ele diz, e com razão, que o inconsciente só serve para perpetuar na psicanálise muitas coisas inconscientes.

Discutir a existência do inconsciente, porém, é um caminho equivocado. Cairíamos no paralogismo kantiano, já que o fato psicológico não é um objeto da experiência espaço-temporal. Outra coisa é abordar o inconsciente pela linguagem, como um conceito apenas operativo, gramatical, que funciona como uma ferramenta e nada representa no mundo. Nomear assim o inconsciente significa dizer que é no ato, vivido no interior do setting analítico, que se dá ao analista a abertura inconsciente na qual ele intervém.

Lacan lembra, concretamente, que o inconsciente é aquilo que entre o sujeito e o Outro é o seu corte em ato (cf. Écrits, p. 839). Inconsciente é o nome da possibilidade que se abre para a intervenção do analista dentro da fala narcísica do paciente, aquela intervenção que rasga as paredes da sua prisão, abre janelas para outro panorama e permite que as imagens se modifiquem. Como não se trata de convencimento, as intervenções do analista só podem se dirigir ao inconsciente.

Para isso, só pode ser utilizado o material que o próprio paciente apresenta. O analista não pode tirar nenhuma conclusão acerca do paciente, só pode restringir-se à fala, à atuação sobre a forma da fala do paciente, não ao seu conteúdo. A condição para que tudo isso funcione é a transferência, a adesão do paciente ao tratamento e a condução da análise dentro das regras fundamentais da psicanálise.

O final da análise é uma saída ética, na qual se troca o desejo de reconhecimento pelo reconhecimento do desejo. Não somente o saber de um inconsciente que não se sabe, o cuidado de si, mas também a responsabilidade, a preocupação do fazer com o outro, fora de uma exclusividade irresponsável consigo.

2 comentários:

Anônimo disse...

Olá João!


Ao ler o seu artigo, imagino que você, quando nele fala da dissolução de um problema em psicanálise como simples, esteja a considerando do ponto de vista apenas teórico. Mas, em primeiro lugar, saiba (e sei que você sabe!) que divido esse mesmo ponto de vista teórico que você! Mas fiquei aqui compelido a dar meu testemunho de que, se de um lado é perfeitamente simples a dissolução de um problema pela ótica teórica, de outro lado, o da clínica, torna-se um enorme desafio para o psicanalista. Isso porque, ao escutar a queixa do paciente em sofrimento, não é nada difícil perceber que ele quer que enxerguemos por ele quais são os seus problemas, e que digamos a ele qual caminho a seguir para sua resolução. Dito de outro modo, ele não está disposto a enxergar nada por ele! Ele supõe que o analista saiba enxergar por ele (sujeito suposto saber!). Mas aí entra a ética da psicanálise, já magistralmente citada por você, que nos impede de entrar nesse jogo “proposto” – ainda que inconscientemente - pelo paciente, para fazermos com que ele aprenda a jogar o jogo com a lógica psicanalítica! E, para isso, nos deslocamos na transferência do imaginário para o simbólico buscando o real: os atos do paciente! Contudo, isso está longe de ser simples. Não é fácil fazê-lo sair do jogo de sua “prisão formal” para entrar no da psicanálise mas, se ele conseguir, ela (a psicanálise) pode até não curá-lo da cegueira mas ao menos o fará enxergá-la, passando o paciente, então, a ter de assumir as conseqüências dessa descoberta, o que já é uma cura para nós psicanalistas!
Afinal, não é sempre que conseguimos intervir com uma palavra que “rasga a janela da prisão” do paciente. Quando a conseguimos e se a conseguimos, só nos damos conta disso a posteriori, sempre, pois, quando intervimos, intervimos no discurso que escutamos e que sabemos, pela nossa experiência, que ele pode revelar talvez um sentido inconsciente do paciente, mas um sentido que ele só poderá assumir quando escutar com os seus próprios ouvidos sua própria fal(H)a!
E isso é o que torna tão difícil ser psicanalista, pois na clínica, o psicanalista experimenta a capacidade de despojamento que ele tem de si mesmo, de seus valores, de preconceitos, através dos resultados ressubjetivantes ou não de suas intervenções para com seus pacientes.
É muito difícil o analista se fazer de instrumento para que o paciente possa se escutar num sentido diferente daquele que o faz sofrer, porque para o paciente parece não haver outro sentido que não aquele em que ele está “aprisionado na linguagem”. O analista tem que saber se deslocar na própria linguagem, para sempre relançar o discurso do paciente, ou seja, para conduzir-se ao já tão conhecido lugar do objeto causa do desejo do analisando!
A dissolução de um problema em psicanálise é simples, mas a aplicação desta é mais do que um desafio, é a difícil tarefa de botar à prova o desejo de analista, que deve estar em conformidade com a ética da teoria psicanalítica lacaniana. As leituras, as supervisões e a análise pessoal – tripé de formação do analista – são, além de onerosas, extremamente penosas para a pessoa do analista já que o coloca, todo o tempo, em contato com a sua própria maneira de gozar.
Mas vale cada preço!
Um forte abraço,

Campinas, 21/12/08

Rodrigo A. S. Abreu - psicanalista

Decolonizing Wittgenstein disse...

Caro amigo Rodrigo.

Obrigado pelo seu maravilhoso complemento. Faltou-me dizer que o mais difícil do mundo é o simples!

Você esclareceu perfeitamente por que.

Gde Abç,
JJ.