sexta-feira, 19 de dezembro de 2008

Não Há Marcas Anatômicas na Psiquiatria


Este é Gaëtan Gatian de Clérambault, conhecido pelos conceitos de "erotomania" e de "automatismo mental". Lacan, algumas décadas após a sua tese de doutorado em psiquiatria, na qual nada utiliza das teorias do professor senão para fazê-las figurar na bibliografia, declara na maior desfaçatez que foi o seu mestre em psiquiatria. Colou na idéia do automatismo na década de 50 para constituir a sua própria noção de repetição simbólica.

Mas Clérambaut era organicista convicto; na tese de 32, Lacan alinha-se pelo partido da psicogênese, reatualizando a psicologia concreta de Politzer (sem mencioná-la) para dar um sentido para o caso Aimée. Tudo bem, porque Clérambaut havia se suicidado melancolicamente em 1934 e nada mais podia reclamar.

Mas a tese de Lacan em psiquiatria mostra, sem dizer, no início do século XX, os problemas habitacionais da psiquiatria no campo da medicina. Organicistas e psicogenicistas tentavam legitimar-lhe um lugar, uma área de investigação própria, uma casa, de um tipo ou de outro, onde ela pudesse permanecer ao abrigo de intempéries.

O advento dos neurolépticos e o aparecimento do DSM, um manual de psiquiatria com conceitos puramente operatórios e que nada afirmam a respeito de uma gênese, parecem ter varrido a polêmica para baixo do tapete e escamoteado até hoje disputas maiores nesse setor. Não quer dizer que o mal-estar não exista, porque na sua prática, por qualquer via que tenha escolhido, ou a psiquiatria não passa de psicologia, ou a psiquiatria não passa de neurologia, conquanto inventivas sejam quaisquer das novas teses que dizem ter resolvido o problema e justificado objetivamente um lugar. Tudo não pode ser, necessariamente, mais que bla-bla-blá filosófico, e a psiquiatria vai ficando ali, dentro do armário, sem nada assumir de fato. Há muito dinheiro em jogo, afinal. As instituições, centros de pesquisa, hospitais e a academia estão todos muito bem montados, funcionando com centenas de funcionários e milhares de atendimentos. Os projetos de pesquisa que fazem andar a especialidade, na forma necessária de um bla-bla-blá filosófico de fundo, vão sendo submetidos a pareceres para o pessoal da área de saúde (médicos, biólogos), que os aprovam sem qualquer visão crítica, sem qualquer profundidade: vão dizer o quê? Avaliar filosofia
? Tomam os projetos apenas como "científicos", na forma em que se acostumaram a enxergar essa palavra. E, assim, end of the story as we know it, psiquiatras fumam charuto e tomam uísque nas suas festinhas - numa boa. Melhor deixar tudo como está.

Lembro disso a propósito de um fato recente ocorrido em Milão, em junho passado (ainda bem que foi em Milão, e não em São Paulo onde isso não é possível). Foi decretada a prisão de um grupo de médicos que trabalhava numa clínica particular, denominada Santa Rita. Eles efetuavam procedimentos médicos e cirúrgicos desnecessários em pacientes indefesos e crédulos, para aumentar o reembolso devido pelo Estado.

Imagine se fosse um ambulatório de psiquiatria. Como poderia um paciente psiquiátrico, já em si racionalmente desqualificado por um "diagnóstico" (sic) de "transtorno mental", sem quaisquer marcas anatômicas, apresentar queixa contra um procedimento que lhe tenha sido mal aplicado?

O que é um procedimento psiquiátrico mal aplicado
?


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