quarta-feira, 7 de janeiro de 2009

Linguagem e Pulsão em Wittgenstein

Se o filósofo diz que "Em toda grande arte há um animal SELVAGEM: domesticado" (CV, p. 43) é porque pretende ressaltar a ligação estreita do estético com as pulsões primitivas do homem. Sem isso, não há na obra de arte qualquer profundidade ou poder.

Embora o seu extremo pudor o tenha levado a acreditar que a sua própria obra (arquitetônica e escrita) não tinha sido mais do que mera reprodução, faltando-lhe justamente profundidade e poder, permito-me discordar do autor e qualificá-lo como um dos maiores e mais artísticos filósofos do século XX. Com a visível conseqüência em efeitos de profundidade e poder na sua escrita, claro.

Mas aqui proponho de supetão duas coisas ainda não esclarecidas:
(a) ligação entre obra de arte e pulsão;
(b) efeitos visíveis em profundidade e poder.

Este é um artigo que vou escrever mais tarde. Por quatro motivos:
(a) Freud fez a ligação entre linguagem e pulsão como uma espécie de processo empírico ocorrendo no interior de conteúdos mentais (sem sentido)
(b) Lacan fez a ligação entre linguagem e pulsão como uma espécie de automatismo lingüístico ocorrendo em concomitância com atos individuais (um ocasionalismo sem explicação)
(c) Wittgenstein não deu privilégios epistêmicos à linguagem. A linguagem é tratada como ato entre outros atos subjetivos. Isto é, como vivências. Nesse sentido é que a relação entre linguagem e pulsão pode ser tanto de conflito como de domesticação.
(d) A articulação em linguagem, para Wittgenstein, assume características poéticas como estratégia para vencer a resistência da vontade e atingir objetivos terapêuticos. Essa seria a idéia por trás da metáfora da domesticação do animal selvagem.

Para terminar, veja, caro leitor, essa declaração dos Ditados a Schlick (em The Voices of Wittgenstein, The Vienna Circle (Baker, G. (ed.)), pp. 68-69):
Nosso método se assemelha em certo sentido à psicanálise. Na sua forma de expressão poder-se-ia dizer que uma metáfora atuante no inconsciente é neutralizada se a articulamos. E esta comparação com a análise pode ser ainda mais desenvolvida. (E esta analogia não é, com certeza, uma coincidência).

P.D. 1: Para quem se interessa, publiquei um artigo sobre Wittgenstein e a psicanálise na Revista Trans/Form/Ação. Mas ali não levei em consideração essa última declaração.

P.D. 2: Acabei também de escrever outro artigo sobre "Em toda grande arte há um animal selvagem: domesticado", que gostaria de dedicar a viciados em poesia (não é o meu caso) e publicar em outro periódico acadêmico por aí.

Abçs.

4 comentários:

filomena disse...

Eu não entendo bem a noção de pulsão. Se for um instinto, como aquele de a aranha fazer teia, então linguagem é da pulsão do ser humano com certeza.

Mas para arte não pode ser o mesmo. Todas as aranhas fazem teia e todos os serem humanos falam. Mas fazer arte não é assim. Não são todos os humanos, embora só os humanos.

Agora se for pulsão de desejo é diferente. A arte pode ser mesmo terapêutica neste sentido.

Confesso aqui de onde veio minha idéia do acalento. Foi de um sonho de angústia, que descrevi no meu blog. Uma pulsão de sair da angústia era a arte neste sonho:

De repente o mundo ficou sem graça. Sonhei que todos da minha família tinham morrido. Eu ficava, então, toda noite, em um ponto de ônibus para voltar do trabalho, admirando um parque. Não dá para ver o interior do parque; somente a escuridão interna em segundo plano. Em primeiro, algumas folhagens de árvores mais a grade que circunda o parque. Angústia e vazio. Então, ouvi uma música cantada por um mendigo no ponto. A música dele acompanhava a contemplação estática de toda noite. O canto era meu acalento. Tornava suportável a escuridão do parque. Um cemitério? Mas ao levantar o rosto em direção da música, não era o cantor. Eram alguns taxistas lembrando e imitando o cantor que também havia morrido. Peguei meu ônibus. A partir daí, a vida pareceu um pouco perdida, sem um objetivo mais elaborado e difícil de concretizar. Parece uma tatuagem kadiwéu, é uma figura que sugere continuidade, como se as linhas não acabassem, sugerindo movimento através das espirais que terminam dando a volta e refazendo o mesmo caminho. Figura dentro de um ônibus sem chegar a lugar nenhum.

Mas parece que a noção a ser empregada de pulsão é ainda mais. Qual é noção de pulsão para Wittgenstein? E para a psicanálise?

Gostaria de ver o texto a ser publicado, se você permitisse.

Bj.

filomena disse...

Mais só uma pequena observação. Olha (novamente) este poema de Adélia Prado. Você não acha que quem consegue domesticar o desejo neste grau de beleza, não teria conseguido neutralizar pelo menos parte deste desejo? Imagina a dificuldade para domesticar o desejo até ele ficar assim articulado. É um trabalho e tanto. Arte não éo mero fazer teia de aranha.

AZUL SOBRE AMARELO, MARAVILHA E ROXO

Desejo, como quem sente fome ou sede,
um caminho de areia margeado de boninas,
onde só cabem a bicicleta e seu dono.
Desejo, como uma funda saudade
de homem ficado órfão pequenino,
um regaço e o acalanto, a amorosa tenaz de uns dedos
para um forte carinho em minha nuca.
Brotam os matinhos depois da chuva,
brotam os desejos do corpo.
Na alma, o querer de um mundo tão pequeno,
como o que tem nas mãos o Menino Jesus de Praga.

Decolonizing Wittgenstein disse...

Oi, Filomena.

Acho que é bem fácil definir pulsão na psicanálise, até porque Freud já a circunscreveu à diferença de instinto. Menos os animais, todos os humanos a têm. Vc, como sempre, acertou em cheio.

Mas não queria falar intelectualmente, então é bem difícil.

A pulsão é o touro, e a arte é Manuel Rodríguez, em Alguns Toureiros, de João Cabral de Melo Neto. A arte é o seu canto no sonho (no canto do mendigo), e a sua tatuagem kadiwéu. Mas a angústia não é a pulsão, é um mau jeito de lidar com ela, que é inevitável.

Não há definição de pulsão em Wittgenstein, como não há definição de nada em sua filosofia. Ele apenas menciona a frase "pulsões primitivas do homem" no contexto daquele trecho sobre arte como domesticação do selvagem. Entendo que para ele pulsão seja algo pré-lingüístico que pode ser mal ou bem articulado na linguagem. Daí a necessidade, para ele, de escrever filosofia como se escreve poesia.

E por falar em mal articulado, achei engraçado vc me pedir permissão para ver meu texto. Já havia sentido, antes de vc pedir, a vontade de escondê-lo só de vc.

Explico: escrevi para viciados em poesia. Deve haver muitos por aí, claro, mas não conheço nenhum senão vc. Então, na verdade, esse texto foi dedicado a vc, que me inspirou. O que depois me deu muita vergonha, por cabotino e tolo. E agora, pior, desarmado: já que sou eu quem deve pedir a permissão.

Vou fazer o seguinte: amanhã vou estar convalescendo de uma cirurgia no dente. Então terei tempo de dar um retoque, e depois te entrego impresso. Vc dirá.

Mas não tome esse cabotinismo por cabotino, por favor. É uma expressão sem jeito de grande admiração.

Nos vemos.

JJ.

filomena disse...

Vergonha?! Eu é que deveria sentir vergonha de não saber nada de filosofia e de psicanálise. E admiração?! Não pode. Veja que eu gosto de seus escritos, são provocativos e me fazem ficar pensando. Por exemplo, fiquei pensando agora que angústia não pode mesmo ser a pulsão. Tem que ser algo do campo da necessidade. Até mesmo de uma necessidade de expressão que causa prazer. Uma necessidade primitiva e fatal. Se ela consegue ser articulada suficientemente para causar este tal prazer naquele que escreve e naquele que lê...Bem o oposto de angústia. Vou ficar pensando nisso... Admiração por eu ser levada a refletir?! Não pode mesmo.

Bom restabelecimento do dente. Isso pode ser do campo do angustiante. :)
Até mais.