terça-feira, 29 de julho de 2008

A Chave da Loucura


"Idéia de Freud: a fechadura não está destruída na loucura, só modificada; a velha chave não pode mais abri-la, mas uma chave configurada de outro modo poderia".
(CV, p. 39; MS 120, p. 56v)

Dificilmente Wittgenstein teria lido outros textos de Freud em sua vida além da Interpretação dos Sonhos e Psicopatologia da Vida Cotidiana. Desse modo estaria completamente descartada maneira como Freud descreve a economia, a dinâmica e a topologia dos mecanismos psicopatológicos como pano de fundo para intepretar a misteriosa frase acima, sobre fechadura e chave, anotada no dia 02/01/1938 no Manuscrito 120. Em O Inconsciente, de 1915, é que ficamos sabendo que o esquizofrênico trata representações de palavra como representações de coisa. Além do mais, nos textos freudianos pós-1914, que vinculam a psicose ao narcisismo, ficamos sabendo também que a psicanálise não tem serventia para esquizofrênicos (foi só Lacan quem reabriu essa possibilidade). Wittgenstein não sabia de nada disso.

No decurso de 1938, Wittgenstein mencionou Freud muitas vezes em suas classes e anotações nos diários. Ele estava profundamente interessado na prática gramatical da psicanálise e no seu poder de persuasão: "What I'm doing is also persuasion" (Lectures & Conversations on Aesthetics, Psychology and Religious Belief, p. 27). Toda a argumentação pretensamente científica de Freud lhe parecia uma confusão a ser combatida, mas a gramática da psicanálise foi algo que ele incorporou ao seu método (vide o meu artigo em Trans/Form/Ação).

Portanto, só podemos interpretar a idéia da fechadura e da chave do ponto de vista gramatical, isto é, como relações internas dentro de uma rede de compreensão do comportamento humano. Então, ali, essa não é realmente uma idéia de Freud; é no máximo uma idéia, poder-se-ia dizer, freudiana.

A idéia é a seguinte: nossa maneira de lidar com a loucura não deve ser feita nos mesmos termos que a nossa maneira de lidar com o comportamento restrito ao padrão normal. A chave deve ser configurada de outro modo. Por quê? Obviamente porque o louco não joga o mesmo jogo que o dito "normal". Como é o seu jogo? Bem, isso cabe a nós descrever, isto é, reconfigurar a chave e abrir a fechadura. E, se bem entendemos Wittgenstein, descrever não a loucura (ou a esquizofrenia, se você quiser), mas o comportamento da pessoa que compreendemos nessa fisiognomia, ou o caso dessa regra. Mas aí já não é mais terapia conceitual, trata-se de uma tarefa para psiquiatras ou psicanalistas.

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