domingo, 30 de novembro de 2008

Saramago, Wittgenstein e a ética


Permitam-me reproduzir aqui um trecho em que o escritor português - e prêmio Nobel de literatura - José Saramago diz que a humanidade não merece a vida que tem. Foi durante uma sabatina no Teatro Folha de S. Paulo, no dia 28/11/2008:

"A história da humanidade é um desastre contínuo. Nunca houve nada que se parecesse com um momento de paz. Se ainda fosse só a guerra, em que as pessoas se enfrentam ou são obrigadas a se enfrentar... Mas não é só isso. Esta raiva que no fundo há em
mim, uma espécie de raiva às vezes incontida, é porque nós não merecemos a vida. Não a merecemos. Não se percebeu ainda que o instinto serve melhor aos animais do que a razão serve ao homem. O animal, para se alimentar, tem que matar o outro animal. Mas nós não, nós matamos por prazer, por gosto. Se fizermos um cálculo de quantos delinqüentes vivem no mundo, deve ser um número fabuloso. Vivemos na violência. Não usamos a razão para defender a vida; usamos a razão para destruí-la de todas as maneiras -no plano privado e no plano público."

O leitor desse blog imediatamente reagirá ao título proposto para esta reflexão: o que tem a ver Wittgenstein com Saramago? E eu diria: não sei. Pois o ponto aqui não é propriamente o da comparação entre um escritor e um filósofo, muito embora esse escritor tenha uma filosofia e esse filósofo tenha uma estética na escrita.

O que vi na declaração de Saramago é a atenção direcionada a um certo tipo de uso da razão, aquele pelo qual não mais merecemos a vida que temos, e a ligação imediata, orgânica, da prática com a ética. Esse é o ponto de coincidência, a meu ver, claro, entre o escritor-filósofo e o filósofo-escritor.

Nos §§ 211 e 217 das Investigações Filosóficas, Wittgenstein simula situações em que uma cadeia de razões, empregada de acordo com uma certa prática, chega ao seu fim. Através de questionamento dos argumentos e fundamentos das teses, o terapeuta chega a um ponto em que o interlocutor não mais consegue justificar a prática pela cadeia de razões a ela correlacionada. O que acontece, então? Nessa hora, as pessoas simplesmente dizem: "é assim que eu ajo".

Nestas passagens Wittgenstein demonstra a primazia do ato sobre as razões. Mas não é que o ato (e suas correlativas razões) estejam simplesmente ali como um nada (ou como um algo). É que silenciosamente pesa sobre o ato uma pergunta ética.

Que você faça ou aja assim, tudo bem; que as suas razões estejam organicamente vinculadas ao seu próprio ato, tudo bem também. Mas o que fazemos com tudo isso? Afinal, uma maneira de agir afeta consideravelmente a relação consigo mesmo, com os outros e com os objetos no mundo. Não existe ação neutra, do ponto de vista ético. Um ato é uma ação de poder, e uma ação é também um modo de ver as coisas (cf. IF § 122).

Por tudo isso, claro, Wittgenstein disseca o sentido dos atos, os põe a nu, para que, desnudos, revelem-se mais claramente sua armação gramatical e suas possíveis misturas conceituais no interior de certas aplicações práticas. Confusões como, por exemplo, confundir o psicológico com o científico; tomar a linguagem como uma entidade real com uma essência real; buscar no oculto por trás das aparências uma resposta para o que está claramente ali diante de nós. Esses são exemplos de ilusões gramaticais, mistura entre jogos de linguagem, que escamoteiam a sua prática real, o ato. O método da filosofia é colocar a gramática em visão sinóptica e depois descrevê-la, para que se mostre a maneira como vemos as coisas. Em funçaão dessa descrição, variam-se os exemplos similares, fazem-se comparações, e levam-se as imagens às suas últimas conseqûências, aos seus atos nus. O objetivo é uma conversão sem que nada se sugira, apenas reempregando metodicamente as próprias palavras utilizadas pelo paciente.

Ou seja, não são tanto os atos que importam, que, como tais, são livres, mas as confusões gramaticais que vez por outra produzem ilusões. O que importa é, portanto, a ética, a capacidade de mudarmos - se quisermos.

A ética é, para o filósofo vienense, um absoluto sobre o qual nada se pode dizer. Esses absolutos são proposições gramaticais: eles não têm sentido. Ao contrário, o sentido e o significado se estabelecem de acordo com esse padrão de medida, são fundados no seu emprego, e, assim se mostram na sua aplicação, no seu uso, na sua práxis. O ético é também uma gramática como qualquer outra.

E aqui a famosa "crítica da razão prática" deixa de ser uma exigência do dever em termos de um absoluto racional. A espontaneidade, em Wittgenstein, não é mais a da "razão" como o é compulsoriamente para Kant - é a pura vontade expressa no agir, bem antes que a racionalidade ali compareça e se instale para justificar-se de acordo com regras dadas a priori. O absoluto é meramente uma proposição gramatical qualquer: um ato, independente de que ato seja.

A exigência do dever não pode ser, portanto, um juízo de valores. Como ética, é apenas uma escolha. E colocar a ética no plano de uma escolha não implica nem o relativismo do "qualquer coisa vale", nem o dogmatismo em que "só o meu é que vale". Trata-se de assumir abertamente, sem dissimulações, a defesa de uma certa ética. No caso dos autores em foco, Wittgenstein ou Saramago, assumir uma ética pela qual muito coincidentemente a frase de um poderia também ter sido do outro: a humanidade não merece a vida. Em Wittgenstein, a ética é uma luta contra o feitiço que certas formas de expressão exercem sobre o nosso entendimento pela linguagem (IF § 109). Do ponto de vista de quem defende a cultura contra a civilização, fala-se aqui da falta de responsabilidade cotidiana e crônica de todos nós, ao desconhecermos convenientemente as consequências de tudo o que fazemos, ao nos cegarmos para certos aspectos do mundo enquanto só enxergamos um lado da coisa. A luta é travada com as armas das descrições dos diferentes jogos de linguagem.

Em Saramago, a luta é travada com histórias, como A viagem do elefante, que indicam que a saída da cegueira é a vontade.

Em ambas as batalhas são armas da linguagem contra as ilusões da linguagem.

A coincidência entre Saramago e Wittgenstein é a opção por uma ética que favorece a vida - vivida, evidentemente, em oposição a valores caros à civilização moderna.

Um comentário:

filomena disse...

Consegui articular direito finalmente sobre arte/gramática. A polêmica está lançada :). Visite o Vida de Índio. Demorou, mas acho que agora saiu o que penso.